E AGORA, JOSÉ?

Pensei bastante para colocar esse título no post. Ele tem algum traço politicamente incorreto? Como é expressão antiga, pode ser que esteja condenada. No entanto, tendo ela saído da pena do grande Carlos Drummond de Andrade, deve ter validade.

E o que vou escrever não tem nada a ver com José, nem com poesia, nem com o magnífico poeta.

Tem a ver com o que vem por aí. Em como será a vida depois que o fantasma COVID-19 deixar de assombrar nossa existência.

Não tenho nenhuma dificuldade com a quarentena. Não saí de casa nem uma vez desde a véspera da decretação do isolamento pelo governador de Brasília. (Mentira, saí uma vez com minha mãe para nos vacinarmos.) Henrique decretou a nossa quarentena no dia 14 ou 15 de março. Inacreditável! Todo mundo em casa! Nada dos lanches de sexta e almoços de sábado em que nos reuníamos todos aqui em casa. Como moro com a minha mãe, nossa casa é o centro de reuniões da família.

Tirando essas reuniões de família e os fatos que mais me incomodam – não acompanhar a fase linda que Cecília está vivendo, entre um e dois anos, nem a gravidez da segunda netinha, nem poder ir ajudar minha nora enquanto ela trabalha em casa com a espoletinha pedindo atenção – de resto o isolamento é tudo de bom para mim. Não me incomodo nem um pouco de ficar em casa. E tudo vem a mim. Igreja pelo celular, seja Facebook, Instagram ou algum aplicativo. Consultas médicas, terapia e aulas também por aplicativo. Compras pela Internet. Enfim, tudo chega aqui sem que eu tenha que sair. Poderia continuar assim para sempre. Me sinto protegida aqui no meu casulo.

Ah, mas vai chegar o dia de sair. E aí, José? Como será? Quando vou ter a tranquilidade suficiente de sair daqui sem trazer de volta o vírus que pode contaminar minha mãe? Como vai ser a vida em sociedade? Que mudanças haverá nos contatos humanos?

Penso que muitas pessoas sentirão, durante muito tempo, medo de encostar nos outros. Haverá traumas, ansiedade, medo…

Na verdade, o que me incomoda nesse tempo de isolamento é esse desconhecimento do que virá, do que há de ser, das novas regras culturais não impostas que vão nascer. Para mim, é um momento de instabilidade e incerteza.

Sinto mais ou menos o que senti quando as Torres Gêmeas foram derrubadas. O mundo nunca mais será igual ao que era, e não sabemos como vamos nos adaptar à nova realidade. Eu, pelo menos, não sei.

E agora, José? Vou em frente, porque não tem jeito de voltar (nem eu quero). Viver o novo mundo que surge, cheio de gente dolorida por ter perdido um parente ou amigo, buscando sempre espalhar por toda parte o amor de Deus.

CLAUDIA E PONTO FINAL

Quem me acompanha neste blog já deve estar cansado de ler sobre minha comunidade de fé, a IMAS, Igreja Metodista da Asa Sul. O fato é que as pessoas que, como eu, chegaram a Brasília na década de 60 e até início de 70, fizeram da nossa igreja uma parte da família. Os membros da comunidade encontraram ali consolo por terem deixado pais, irmãos, sobrinhos, primos, tios, etc., em cidades distantes. Acabamos formando um tipo de família extensa, que só quem faz parte dela entende.

Eu tinha 5 anos na época, então não sei narrar os fatos com precisão. Na minha memória, no entanto, desde que chegamos havia um casal mais idoso, com duas filhas já adultas. Seu Olintho, dona Bernadette e as filhas Antônia (casada com seu Ary), e Judith.

Sem que eu precisasse de qualquer explicação, achei ótimo quando chegaram aqui um monte de netos do casal. Bernadette, a mais velha, logo se tornou minha amiga. Atravessamos juntas infância, adolescência, juventude, a vida adulta e agora somos vovozinhas, até hoje juntas, vivendo alegrias e tristezas uma da outra. Sempre grandes amigas. Sabe aquela pessoa que te conhece tanto que você não precisa explicar? Pois é, somos assim.

Voltando no tempo, o que me causou grande alegria quase foi uma tragédia. A mãe daquela criançada toda tinha sido atropelada! Quando se recuperou, em vez de levar as crianças de volta para Belo Horizonte, dona Ábia (a mãe da criançada) decidiu vir com o marido, o seu Balmes, para Brasília. Que decisão que me abençoou!

Eu frequentava a casa deles, assim como a Bette frequentava a minha. Na adolescência Bernadette virou Bette para os amigos. Em família, é Dette. Há pouco tempo ela revelou que não gosta de Bette, mas o apelido que me é tão caro ao coração sai da minha boca antes que eu perceba.

Nessa fase adolescente, os amigos têm que ter a idade próxima. A irmã da Bette, a Bia, era considerada pirralha por nós, não fazia os mesmos programas, era de outra “turma”. Felizmente a gente cresce. E Bia se tornou outra de minhas grandes amigas, do fundo do coração.

O tempo passou. Meu amor por dona Ábia crescia cada vez mais. Era como se eu tivesse mais uma tia. Eu cresci, virei adulta, e passamos a ter conversas mais profundas. Ela se tornou minha intercessora. Sempre que eu tinha um problema, contava para ela, pedia oração e tinha certeza absoluta de que ela seria fiel na oração. A resposta aos meus pedidos era sempre a mesma:

– Fica tranquila, eu e Chinica vamos orar. (Chinica era a dona Antônia, que eu citei lá em cima.)

Trocamos confidências. Ela me deixou exemplos e lições de vida inesquecíveis.

Infelizmente, chega uma hora em que todos partem deste mundo. A partida dela doeu fundo em meu coração. Até hoje sinto saudade dela. Muita. Além de perder uma pessoa que amava demais, fiquei sem minha intercessora fiel.

Logo depois que ela foi para a casa do Pai (como ela dizia), falei para a Bia que gostaria de ter alguma coisa dela. Um livro, ou um objeto. Não roupa, alguma coisa de que ela gostasse e que nenhum dos filhos quisesse.

Pouco tempo depois, Bia me entregou um tesouro. Durante muitos anos, dona Ábia lia diariamente um livro de meditações chamado Mananciais do Deserto. Ela fez daquele livro um tipo de diário. Anotava fatos importantes, no primeiro dia do ano escrevia na primeira página onde estavam os filhos, o que estavam fazendo, as necessidades especiais do ano que começava e gratidão pelo ano que terminava. Bia fez cópias para cada irmão e… para MIM! Na capa, além da capa do livro, uma linda foto da dona Ábia. Chorei, e quase choro de novo enquanto escrevo.

Li esporadicamente no início. Doía muito ver o sorriso dela ali na capa, sabendo que agora só vou ver esse sorriso na “casa do Pai”. No início deste ano, decidi ler diariamente. Que delícia ver os comentários com a letrinha linda dela!

Reparei logo que ela anotava os aniversários sempre indicando quem era a pessoa. Por exemplo: Marcos (da Cristina e do Joel), Fulano da Sicrana, Fulana do STF, Outro da Igreja. Alguns ela colocava nome e sobrenome. Claro que os filhos, os parentes, os que eram especiais para ela não precisavam de explicação. Colocava o primeiro nome e pronto.

No sábado cheguei ao meu aniversário… Lá está: “Aniversário da Cláudia” e ponto final. Fiquei parada, olhando aquilo. Mais uma vez as lágrimas me vêm aos olhos. Ela não precisava colocar meu sobrenome, nem qualquer explicação para saber de que Cláudia se tratava. Nem sei explicar o quanto me senti importante, amada, valorizada por aquele ponto final.

Muito obrigada, dona Ábia, nunca ninguém soube amar como a senhora! Quanta saudade, que aumenta à medida que o tempo passa…